sábado, 7 de maio de 2016

Uma carta para a ditadura






Curitiba, 05 de abril de 2021

Olá, querida humanidade

ou mais precisamente, olá, querido Brasil. Que é meu país. Minha pátria. 

 Eu venho do futuro. De um futuro distante. E você não precisa se preocupar com números. Eu tenho catorze anos aí na sua época. Na época para que mando essa carta: 2016. E o que escrevo tampouco é uma carta. É um grito de desespero. É um soluço. É uma súplica. Eu estava sentada no sofá, olhando para a TV e vendo toda a guerra que acontecia no país nesse ano. O vidro da TV me era como um escudo. Eu chorava por trás dele mas ninguém podia ver minhas lágrimas. Óbvio que isso não podia deixar de me fazer triste. Eu queria estar lá. Nas ruas. Com bandeiras, correndo, sentindo-me parte de um grupo pela primeira vez. Mas não. Eu não conseguiria estar em um dos lados. Os dois estavam errados. Eu olhava a tela da TV mas o único lugar em que me via era a faixa entre as duas ruas. Podia cair para um dos lados a qualquer momento. Mas eu não estava lá. Eu estava sentada no sofá. Olhando, chorando. Prevendo o fim. 

 Essa "guerra" durou um bom tempo. Até que a ditadura foi ao poder. É óbvio que uma hora isso ia acontecer. Porque era o que a população queria. Era um erro que não havia sido aprendido no passado. Era algo que se precisava doer. Era uma ferida que devia ser esgarçada mais para que pudéssemos aprender que ela matava. A dor que senti naquele dia nunca poderia ser comparada a mais nenhuma. Minha alma doía. Não por mim mesma, porque não poderia ter previsto o que ocorreria comigo, embora tivesse ideia. Mas porque eu estava revoltada. Todas as minhas esperanças na humanidade escorreram por entre meus dedos. Eu achei que o mundo tivesse aprendido. Eu achei que nós tivéssemos aprendido. 

Eu durei menos de um ano. 

A primeira vez que tudo rompeu, eu estava indo para a escola. Eu odiava aquele pequeno lugar, mas manter a boca calada era um dos preços pela vida. Então eu mantinha. A contragosto, andava pela rua, chutando as pedras do caminho. Até que vi um amontoado de gente. Era costume os contra o governo serem torturados no meio da rua. Era um espetáculo. Nós homens sempre gostamos de ver a dor do outro. Mas não se resumia apenas a isso. Os policiais mentiam sobre um crime que tivesse sido feito. Chamavam o que discordava de terrorista, assassino, ladrão. Assim, todos em volta tinham algo pra odiar. Tinham aquela pessoa na qual descarregar toda a raiva que tinham do governo. Era seguro. Era como se comandantes e povo se juntassem contra um inimigo em comum. Fazia com que a ditadura não caísse. Eu sempre gostava de conferir quem era que estava sendo torturado. Para ver se eu poderia ser a próxima. 

 O problema era que daquela vez, era meu melhor amigo. Estava de joelhos, com os pulsos presos atrás das costas, a camisa rasgada e enquanto um dos policias chicoteava suas costas, o outro acertava a parte de trás de uma arma de fogo várias e várias vezes contra sua cabeça. Que sangrava. Tive a impressão de que vi em seu olhar um resquício de vida saindo. Eu sabia que ele não era criminoso. Eu sabia que ele não era assassino, terrorista, ladrão. E mesmo que fosse, nada nesse mundo poderia deixar que quem devia nos proteger o torturasse assim. Eu corri. Larguei a bolsa no chão e corri. Enfiei meu rosto a frente da arma antes que ela pudesse acertá-lo de novo. A força me deixou tonta. E enquanto meus pulsos eram algemados e meu corpo levantado com facilidade por um dos braços e jogado dentro do porta-malas de um dos carros, eu só pensava uma coisa.

 Nós não eramos criminosos. 

 Eu entendo que para a maior parte das pessoas da época de 2016, quem era morto na ditadura eram criminosos. Mas o que é um criminoso? O que é um crime? Quem decide o que é um crime? Eu tinha certeza que falar contra o governo não era um crime. E foi por isso que me enfiei na frente daquela arma. Foi por isso que fui levada para o subterrâneo. Foi por isso que me torturaram semanas a fio. Foi por isso que eu morri. Foi por isso que eu sequer entrei nas estatísticas. Porque não havia estatísticas de quem morre criminoso. Meu nome foi lembrado muitos e muitos anos depois da ditadura de 2018. Mas depois, não adiantava mais.

E por isso eu escrevo para vocês aí. Porque vocês têm que fazer algo. Têm que entender - pelo amor de tudo que é sagrado, por deus, pelos direitos humanos - que uma ditadura não mata criminosos. Mata você. Seus filhos. Seus pais. Seus primos. Seus avós. Seus tios. 

 E não porque eles são criminosos.


Adeus. 
Amanda Kalinoski

( a carta, obviamente, não é real. mas poderia ser. depende de vocês.)

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